segunda-feira, 5 de março de 2012

A prisão do Preto

No hall de entrada do prédio de um bom amigo meu, existe um pássaro preto dentro de uma gaiola.
Gênero e espécie desconhecidos.
Penas pretas resplandecentes.
Pés tortos e com calos, cheios da merda que alguém esqueceu de limpar.
Comida seca qual casca de árvore a sua volta.
É para comer, ou para ele lembrar da textura das árvores?

Ele é cortés.
Abaixa a cabeça para receber um afago quando alguém o incita a receber essa esmola afetiva.
"Preto! Preto!", chama meu amigo, e ele se curva perante ele.

Mas ele não se deixa acariciar por qualquer um.
Se seu dedo não estiver no almanaque de impressões digitais e unhas gigantes que tentam pousar sobre sua idosa crista, ele te bica com força.
"Me deixe, afinal, sou velho, mas tenho dignidade!"

O Preto - esse é seu nome - tem 17 anos, segundo meu colega.
Quantos deles preso?

Importa?
Mesmo que uma hora, prender um pássaro e assassina-lo em vida.

E se eu tiver me colocado voluntariamente dentro de uma gaiola para não ver?
Para não sentir?

E se apesar dos dedos e unhas que insistem em me cutucar, eu ainda preferisse ficar detido, preso aos meus ideais envelhecidos, as minhas retorcidas maneiras de sentir?

Se o Preto fosse solto, com certeza ele ia voar de novo.
Mas só para perceber que a liberdade sem a grade não é mais uma forma de viver.
Ele ia morrer fisicamente, porque em vida é só isso que ele aguarda: que seu espírito voe de novo sem seu corpo.

E enquanto isso, eu olho em volta à espessura das barras na minha grade emocional.

Será que já cortei minhas assas e joguei a toalha?

E olho para os dedos e unhas que me cutucam todos os dias, entrando entre as barras da minha prisão protetora.
E sinto... e estou vivo para sair desta gaiola.
Por vontade própria.

Vejo vocês lá nos ares da cidade.

Fui.  

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Quarenta e dois


Fiz aniversário esta semana.
Senti vontade de lembrar os aniversários mais marcantes até agora no meu currículo de 42 comemorações.
Os da adolescência ficaram nebulosos na minha memória; isto não foi porque eu estava bêbado ou chapado, como acontece comumente nessa idade – eu comia bolo com leite enquanto meus amigos bebiam cerveja – mas porque podem não ter sido memoráveis ao ponto de deixar uma marca indelével em meu espírito.
Até agora não sei porquê meus pais nunca me fizeram uma festa de aniversário, então a primeira que fiz foi a de 20 anos na minha casa no México, com homens fantasiados de mulheres e vice versa. Lembro que usei um vestido, sapatos, sutiã e maquiagem da minha mãe. Devo ter ficado horrorosa como mulher – tinha cabelo cumprido até o ombro nesse então – mas me diverti muitíssimo porque não só comemorei meu aniversário ao meu estilo mas também minha liberdade. Detalhe: naquela época achava legal ser andrógino.
Mudei em 1990 para Europa, e o de 23 foi em Amsterdã alguns dias após ter sido aceito na Escola de Dança Moderna da cidade. Estava cheio de esperança por ter encontrado outra forma de me expressar artisticamente, mesmo somente três meses após ter começado meu treinamento como bailarino. Uns amigos queridos fizeram um jantar com lagosta para mim na casa deles. Um deles faleceu cinco anos mais tarde de AIDS.
Lembro de uma aula de dança contemporânea que fiz no meu aniversário número 25. O cara que deu a aula tinha me escolhido numa audição para formar uma companhia de dança na Áustria. Minha namorada na época voltou mais cedo de férias para ficar comigo, e no meio de toda a euforia, eu sabia que tinha traído ela esse verão com uma mexicana louca que passou pela cidade a procura de aventuras. Senti uma mistura de culpa e alegria.
Morando na Alemanha, passei o de 26 nas ilhas gregas. Eu e aquela namorada que trai fomos passar três semanas no mar Egeu. Visitamos Milos – a ilha onde encontraram a estatua da Vênus – Sifnos e Folegandros. Foi uma viagem inesquecível. Jantei cordeiro com molho de limão essa noite. A propósito: a cor do mar na propaganda de viagens é aquele azul mesmo, e até no verão escaldante, a água do Egeu é fria ao ponto de você ter de sair por causa da temperatura.
Comemorei os 27 na casa da minha mãe no México após ter ido e voltado de Cancun de carro e ter enfrentado o primeiro furacão da minha vida na costa do mar Caribe durante quatro dias. Visitamos juntos vários lugares na floresta mexicana durante o percurso, e pirâmides que tiram o fôlego de qualquer pessoa que presencie sua magnificência. Senti uma grande realização ao voltar ao meu país após seis anos de ausência, com emprego na Alemanha, e um futuro que ninguém vislumbrava, nem eu mesmo.
Não lembro exatamente se passei o de 28 em Barcelona ou Valencia; de qualquer maneira, estava fugindo de mim mesmo após ter terminado um namoro de 3 ½ anos, sem saber como lidar com minhas traições e solidão. Lembro de ter sentido um buraco gigantesco no peito que não iria fechar durante muito, muito tempo.
O de 29 passei em Nova Iorque. Posso ter jantado num restaurante em Soho ou Greenwich Village aquela noite, não lembro, mas estava acompanhado pela mulher que me traria ao Brasil e que casaria comigo mais tarde. Nessa viagem foi a primeira e única vez que voei de helicóptero, e comprei uma mochila numa loja da Eastpak no extinto WTC. Fiquei com a mochila e a lembrança da altura das torres gêmeas.
O aniversário de 30 foi o primeiro no Brasil, especificamente em Ribeirão Preto. Fazia algumas semanas que tinha conhecido os meus sogros e primos da minha futura esposa, e minha sogra já tinha colocado a gente na rua porque ela queria dominar nossa vida de qualquer jeito. Bem-vindo a America Latina.
Morando em São Paulo desde o ano 2000, convidei umas 100 pessoas para comemorar meus 36 anos num bar; comprei um bolo de 10 quilos, e levei uns 9 ½ de volta para casa porque só compareceram umas 12 pessoas à festa. Foi difícil para mim entender que muita gente fala “sim, eu vou” quando na verdade elas pensam “não estou nem ai para você”.
No de 37 fui jantar com alguns amigos numa pizzaria. Fez muito frio aquela noite. Estava feliz porque havia alguns meses que tinha terminado meu casamento para valer, e estava namorando há dias somente. Plena e total liberdade. Voltei a uma adolescência tardia.
Um ano mais tarde, no de 38, comemorava com tristeza após ter terminado o namoro quer tinha começado um ano antes. Este seria o começo de uma completa renovação de espírito e alma que me levou ao lugar no que me encontro hoje.
Jantei num restaurante tailandês para meus 39 anos com uma amiga; a comida foi simplesmente maravilhosa. Naquela noite fiz um pedido: quero ter uma família. Pedi com força desconhecida até para mim, e com sincero desejo de não ficar mais só neste mundo. Dois meses mais tarde, soube que iria ter meu primeiro filho.
Para o de 40 já era pai. Convidei alguns amigos queridos para jantar em casa e comer um pedaço de bolo. Foi uma comemoração tranqüila, numa nova fase, desempenhando o papel que mais trabalho me custa até agora.
Para o de 41 fomos comemorar num motel na zona leste da cidade. Queria que meu filho entrasse numa piscina pela primeira vez, só que ele não gostou muito.
Para o níver deste ano – 42 – não quis organizar muita coisa porque era uma 2ª feira, e tinha que ir em dois médicos, levar e buscar meu filho na escola, e fazer aula de Pilates a noite. Comprei um bolo simples, e ao procurar velas em forma de número no supermercado, não achei o numero dois. Então comprei o numero três. Pensei: “bom, o ano que vem, coloco o numero dois no bolo e assim volto à conta normal de novo.”
A comemoração foi no inicio da noite. Detalhe: meu presente deste ano chegou um pouco antes.ç Minha filha dormiu durante a comemoração num carrinho para bebe na sala de casa, completamente abstraída do nosso alvoroço. Comemos pizza, bolo, e colocamos umas coroas que minha companheira, esposa, amiga, e cúmplice produziu enquanto ia ao medico à tarde.
 E eis que a historia se condensa no momento para o qual aprendi tudo o que eu sei até agora na minha vida.
Passei e andei por alguns lugares do mundo para chegar até aqui, até a mesa da minha casa, com meus pequenos e minha Esposa, acendendo umas velas com números errados que não tem a menor relevância para eles.
O ato da comemoração é o que interessa.
É a luz da vela que se acende para iluminar o caminho da sua vida mais um ano.
É o calor da chama e dos seres queridos que te lembram que a jornada é sempre junto, partilhando dos momentos, do riso, da surpresa em toda sua efemeridade.
Porque eles passam, mas a lembrança da luz, da música e do estar em família fica para todo o sempre.
 Meus pais nunca me fizeram uma festa, repito.
E agora eu comemoro para mim e para meus pequenos, para minha amada esposa, a força que nossa união representa no ato de nos reunirmos para acompanhar a luz que brilha no presente para iluminar o futuro.
Se há algo a comemorar este ano, é a determinação e a coragem que me ajudaram a resistir e não desistir do sonho de ter uma família.
Salve a luz que retornou aos meus aniversários.
Salve a oportunidade de ser o que sempre quis ser, mas não sabia: PAI!




              

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Eu gosto de...

- Fazer, socar e amassar pão junto com minha família.
- Ver, escutar e sentir meu filho vindo me dar o bom dia, e me abraçando.
- Comer bolo ou bolachas com leite à noite, e só à noite.
- Olhar para minha amada dormindo de madrugada, de costas para mim, e pensar no meio do sono que adoro a paisagem da sua tatuada figura.
- Chorar nos braços da minha mãe, voltando assim no tempo e espaço, e sendo criança novamente.
- Cortar os pelos do nariz que ficam aparecendo toda hora.
- Dar banho no meu filho, e deixar ele de molho no balde do banho, como se estivesse no ofurô.
- Sair andando pela rua da minha casa e cumprimentar as pessoas que conheço.
- Ajudar meu enteado a fazer a lição de casa.
- Saber costurar coisas simples.
- Escutar a risada da minha mãe.
- Saber passar roupa.
- Colocar bastante paio no feijão.
- Olhar para minha amada furtivamente, quando ela não sabe nem percebe, e descobrir sua beleza todos os dias, apesar de eu não contar para ela.
- Saber que não sou mal humorado o tempo todo.
- Fazer cócegas no meu filho, na hora de pôr o pijama.
- Lavar as mãos sempre que posso porque elas ficam meio pegajosas.
- Pintar as unhas de preto de vez em quando.
- Cantar musicas para o meu filho até ele dormir.
- Saber que sou um exemplo e uma forte referencia masculina para meu enteado.
- Depilar as partes íntimas porque acredito que isto contribuiu para a higiene e fica mais apetitoso para minha amada, mas também porque estou começando a ter pentelho branco.
- Pedir sempre “por favor” e falar “obrigado” ao me comunicar.
- Sonhar que um dia vou sentar para escrever os 5 romances que tenho na cabeça.
- Trabalho difícil porque me ajuda a lembrar que posso ser flexível.
- Sentir um tesão arrebatador pela minha amada GRÁVIDA!
- Trabalho difícil porque sei que sou capaz de fazê-lo.
- Peito de frango empanado e macarrão a bolonhesa.
- Fazer a compra na feira.
- Assistir um filme em DVD com minha amada.
- Acender uma vela no altar de casa, e rezar para minhas entidades.
- Olhar para meus filhos dormindo.
- Dirigir na estrada.
- Ser pai, com toda a força e responsabilidade da palavra.
- Saber reconhecer que errei, curvar meu ego e arrogância, e pedir perdão.
- Consertar, pregar e desmontar coisas e móveis.
- Assistir “Procurando Nemo” e “Toy Story 1, 2 e 3” junto com meus filhos porque continuo a me emocionar e aprender com eles.
- Pedir desculpa, porque fortalece o laço com meus seres queridos.
- Ter poucos, mas excelentes e verdadeiros amigos.
- Me matar de trabalhar para poder pagar as coisas que quero ter.
- Vestir terno e gravata para ir trabalhar.
- Falar línguas, e ainda querer estudar chinês.
- Ter e poder pôr comida na mesa da minha família.
- Amar a Deus do meu jeito e saber que ele ma ama do jeito que eu sou.
- Poder ensinar brincadeiras ao meu enteado.
- Ter tempo de buscar meus filhos na escola.
- Saber que minha amada me aceita como eu sou, e que meus filhos me amam por ser o pai deles.
- Poder comer uma pizza no Bráz, mesmo que só de vez em quando. A da Chácara Sta. Cecília também é boa e um pouco mais barata.
- Escutar a risada do meu Pai, apesar de ser quase nunca.
- Ter uma família meia brasileira, meia asteca.
- Ver meu filho crescer e aprender todos os dias.
- Comer os pratos que minha empregada prepara para nós.
- Ver como meu filho é incrivelmente intrépido com menos de 2 anos de idade.
- Saber que nossa empregada é honesta, discreta, e carinhosa com os meninos.
- Estar casado com minha amada, e de aprender todos os dias como amá-la, mesmo sem palavras.
- Saber que o amor sempre será mais forte que qualquer mágoa ou má recordação que possa querer ficar dentro de mim.
- Ter sogros generosos e amorosos.
- Saber que nasci em um país que é considerado como exótico.
- Saber que parece que tenho menos idade.
- Ter morado em países diferentes.
- Ter muitas histórias para contar.
- Poder seguir meu instinto e espírito.
- Ter pedido a minha amada e meus filhos para Deus quando ainda não sabia quem eram eles.
- Saber que agora teremos uma filha.
- Ter aprendido a cozinhar.
- Saber que quase fui ator, e que fui bailarino profissional.
- Ter conseguido mudar de profissão várias vezes com sucesso.
- Assistir o jornal na TV para ver como vai ficar o tempo no dia seguinte.
- Lembrar do sabor das salsichas alemãs.
- Ter namorado pessoas de vários lugares do mundo.
- Ser o que eu sou, como todos os defeitos e virtudes que um homem maduro possa ter.

E você, gosta do que?

terça-feira, 8 de março de 2011

A presença da Eliana

Ontem recebemos a Marcella e a Eliana em casa para o almoço.
À mesa, sopa de nozes, guacamole, e chilaquiles – um tipo de lasagna – tudo feito segundo a receita da minha mãe e a gosto dos convidados.
A Eliana perdeu o Marco, seu companheiro de anos, há umas semanas atrás.
Novamente, tive a honra de estar perto de sentimento da perda de uma pessoa amada e da força da renovação do nosso espírito.

Quem conhece pouco a Eliana pode não ter notado nada ontem no seu ir e vir da cozinha para a sala aqui, em casa, na sua conversa franca e animada sobre todos os assuntos – inclusive a falta do Marco – em suas aproximações dos meninos que bagunçavam entre nós, ou até no papo de cócoras que ela e eu tivemos enquanto tentava fazer meu filho comer mais um pouco de gororoba asteca.

E foi assim, sem nenhuma intenção, ora sentado, ora fazendo o café, que percebi o esforço da Eliana para estar presente, aqui, conosco.

Não consigo nem imaginar o tamanho do espaço disponível no coração dela após a inexorável ausência do amado companheiro. E eis que eu percebi, senti a mãe, mulher, a guerreira Eliana dando as caras para a vida que segue, para tudo e todos os que estão aqui, para os papos descontraídos e muitas vezes sem nexo, para a possível alegria do momento, para a comida, e até para lavar a louça alheia encalhada na pia.
Acho que foi aqui, neste gesto simples, que senti a força da continuidade, o poder da transformação.
“Não precisa lavar a louça,” disse eu.
“Eu sei que não precisa,” respondeu a Eliana, num tom amável, suave.

Os gestos, a repetição, as tarefas mais mundanas adquirem um sentido diferente após passar pelo limiar da morte. O tempo fica longo, os dias com suas noites infinitas.

Então, como prosseguirmos no meio das saudades que querem preencher o espaço disponível?

Assim... lavando louça, visitando a casa de amigos para um almoço de Carnaval, recebendo visitas em casa, participando das conversas, e sobretudo, se permitindo ver, sentir, cheirar os momentos no estado presente.
Porque a vida segue.
E nós devemos seguir com ela.

E assim recebi, indiretamente, uma lição através da Eliana sobre o amor a vida que reside em cada um de nós.
Sobre o poder do simples ato da lavar a louça, de lavar a alma através da ação, do movimento, de prosseguir aqui, reitero, fincado no tempo presente.

Salve a força da Eliana, grande Mestra!
Obrigado por nos deixar estar perto de você.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Meu medo da minha mãe

Minha mãe vem nos visitar em Abril deste ano.
Vai ficar seis semanas conosco.
Será a primeira vez que passamos tanto tempo juntos desde 1990.

Nestes anos todos que levo morando fora, voltei quatro vezes de férias ao México.
Mas foi só na minha última visita que minha mãe não recordou o triste passado que nossa família carrega no coração.

Desta vez, tenho medo desse passado porque eu já consegui entender, perdoar, e ir em frente com ele, mas ela ainda não.
É comum minha mãe abrir o baú das recordações amargas e me mostrar os pedaços e vozes dos cadáveres curtidos com fétido aroma familiar que ela faz questão de preservar.

Tenho medo dela trazer essas vozes de volta aqui, ao meu lar, à minha família.
Faz muito tempo que me afastei desses murmúrios e certamente eles ainda fazem um eco dentro de mim. Sou filho dela. Carrego uma parte dela dentro de mim.

Esses fantasmas ainda são parte de mim e me acompanham para todo lugar que eu vou, mas agora não tem mais poder nem ação sobre mim. Aceitei sua inevitável companhia e já os carrego como simples espectadores; o protagonista aqui sou somente eu. Claro que eles tem opinião e dão palpite toda hora, mas consegui aprender a distinguir minha voz dentro dessa cacofonia do passado.

Não há mais sombra dentro de mim, apenas a suave luz da compreensão que banha estas criaturas, aconchegando-as, porque é possível, sim, vivermos juntos sem peso, sem dor com elas. Afinal, elas são só carentes, e a carência tem remédio: atenção, perseverança e amor.

Às vezes guardamos memórias tristes fervorosamente para termos justificativas para nossa dor se alastrar.
Sem elas, as lembranças, não haveria mágoa e, portanto, nossa comiseração desapareceria.
Dessa maneira, seriamos livres para escolher a vida que quisermos.

Indo mais fundo nesse medo da volta ao cemitério materno, percebi que não quero perder a oportunidade de curtir a companhia da minha mãe por causa desses espectros, e sobretudo, que quero aproveitar a chance de ser filho.
Ser filho.
Ser a criança dela... com ela.

Esta lembrança da infância é vaga dentro de mim.
Seja pela dor, ou pelo embotamento emocional após longos anos de sofrimento, não tenho registro de ter colocado minha cabeça no regaço da minha mãe para receber um carinho, e mais importante, para me permitir recebê-lo.
Resguardei-me no necessário entorpecimento emocional daquela época para não chegar perto – para não descobrir que não havia espaço para mim entre túmulos abertos – e assim poder viver sem vida ao lado dela.
Fui zumbi com sombrero perambulante junto com minha mãe vestida de dor vermelho pulsante.
Às vezes fazemos isto: cavamos para encontrar o féretro, o abrimos, esfregamos os espólios apodrecidos em nossa pele, e ainda deixamos as pessoas a nossa volta sentirem a intensidade desse fedor.

É disto que tenho medo, de não poder colocar minha cabeça no colo da minha mãe. De não poder chegar perto por causa das rançosas memórias que podem vir até o Brasil junto com ela.
Minha mãe tem sessenta e nove anos e problemas de mobilidade.
Tenho medo desta ser minha última chance.
Não sei quando nossa família poderá visitá-la na terra dos tacos e a tequila.
Ela pode não estar mais lá quando nós pudermos viajar.

Mãe, quero poder ser criança, filho para você e para mim.
Quero que vejas o pai que eu me tornei.
Quero ser eu para você.
Ser.
Ser menino de quarenta e um anos para nós dois.

Bem vinda ao Brasil, Maria Concepción Fernandez Torres!

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Marco não está mais aqui

Marco foi embora 3ª feira passada no final da tarde.

Pai de uma grande amiga nossa, a Marcella.
Marido de uma mulher extraordinária, a Eliana.
Ontem pela manhã, fomos prestar uma merecida homenagem a ele, e ao exemplo que sua família tem deixado em nossas vidas.

O local do velório era sóbrio, com coroas de flores em volta do caixão. Este último, decorado com flores brancas e pombinhas coloridas de origami rodeando o rosto calmo e o corpo do Marco. “Que o amor seja mais forte que a dor,” foi o conteúdo de um torpedo que mandei para a Marcella nestes dias difíceis. E o amor estava presente, pairando no ar da sala, nos corredores, e em volta dele, bem suave, firme.

Foi uma honra poder abraçar cada um dos membros da família, senti-los; perceber que eles tiveram tempo, sabedoria, e sobretudo, dignidade para aceitar que é hora de iniciar uma nova jornada numa trilha desconhecida. Amor forte de esposa, amor presente dos filhos, porque o Rodrigo e a Gabriella também estavam lá, com rosto cansado, mas todos em paz.

Eu nunca tinha me despedido de ninguém antes assim.
Marco foi o primeiro.
Fiquei contente de ver seu rosto sereno, de sentir sua pele fria, de percebê-lo em outro estado material. Nosso sentir e saudades se relacionam sempre com o corpo e as lembranças que ficam, com a voz que nunca mais vai falar. Mas ele, a essência do Marco, vive dentro de nós eternamente.

A dificuldade desta família tem estado muito presente em nossa vida nestes dias.
Não só pela proximidade e pela dura provação.
Mas porque é na dor da saudade que fica, que se encontra a falta do estar da pessoa ausente.
Do estar.
Do ser amado não estar mais aqui.
A diferença que criamos na vida das pessoas é estando com elas, acompanhando-as na chuva, no calor, na dor do que é impossível, na alegria do que se ganha, ou na impotência do que não dá para mudar.  
É estando.
Estando junto com elas.
Não é a toa que o verbo ‘estar’ serve de auxiliar para verbos de ação e sentimento.
Estou triste.
Estou aguardando.
Estou vivo.
Estou amando.
Estou indo embora.

Faz algumas semanas que encontro e confronto este jeito de estar com meu filho.
A vida dele é o presente, é o momento.
Se eu não estou, ele não sente minha falta.
Mas quando estou ao seu lado, conversando, brincando, dando bronca ou banho, ele me sente, vê, toca, e morde até.
É isto que marcamos na vida da gente: presença.
Quando a vida diária toma conta de nós, quando as contas tomam nossas vidas, e a carência do afago, do carinho, e a incompreensão nos abalam com sua insistência, é hora de ver onde estamos com a cabeça.
Porque o coração espera, mas uma hora ele cansa.

O sentir une qualquer raça de qualquer nação.
O sentir é simplesmente universal.

Sinta muito, ou sinta pouco, quantia não é relevante.
Mas sinta.
E fale do seu sentir.
Fale porque o corpo deixa de ouvir um dia.
E esse dia pode ser hoje, aqui.

Boa viagem Marco.
Salve sua luz.
Salve suas forças.
Salve sua presença.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Como é ser Renata dentro de mim

14.02.2011
Dia de São Valentim

É o dia do amor e da amizade.
Este dia passa em branco aqui. Não representa mais do que um dia a mais no calendário neste hemisfério.
Desta vez, quis fazê-lo presente em nossas vidas.

Diz à lenda que é o dia do amor e da amizade, pelo menos é isso que as pessoas no meu colorido país tentam trazer para mais perto delas quando pensam neste dia, e na pessoa amada.

Se fosse assim – comemorar este dia pensando nesse alguém especial – todos os dias seriam hoje para mim. Porque eu penso em você, sobre você, e em volta de você todos os dias, mesmo antes de abrirmos nossos corpos um para o outro pela primeira vez.

Falar do amor é fácil.
Incontáveis adjetivos e objetos servem para chegar perto do que ele significa.
Não quero defini-lo aqui.
Porque, em fazendo isto, iria tentar definir você.
Não quero adjetivos, mas sim sensações para ti, sobre como é ser você dentro de mim.

É assim que é... sem querer provocá-lo e sem propósito específico; simplesmente evoco sua energia, seu cabelo, seu cheiro, ou seu físico dentro de mim; também considero suas partes difíceis e tento encontrar minha paz dentro delas, o meu jeito de viver com seu todo, com sua vida agora aqui, comigo, com nossa família e nossos filhos.

Às vezes só te olho de longe, vestida, dormindo, nua, sentada, ou fazendo bico; ou roubo segundos da sua existência que adquirem forma e volume na minha memória, enchendo-se e ficando plasmados aqui, em lugares próximos aonde eu posso olhar, sentir, cheirar você quando preciso, quando não tenho você por perto.

Não há beijo ou parte da sua específica e pintada pele que me faça sentir mais ou menos intenso do que o restante da sua pessoa. Há, sim, inúmeras passagens gravadas por trás dos meus olhos que surgem fortes e claras ao assistir as imagens da sua vida na minha.

Por exemplo, aquela da sua figura olhando para mim do sofá quando eu abri a porta da minha kitchenette no Centro, me esperando lá numa noite de um dia em que você ficou com minha chave, com seu cabelo liso, recém saído do salão, preparada e completa, com lingerie de renda branca, casaco vermelho e tudo o mais, sorrindo para mim inteira, sem reservas, com desejo infindável.
Ou a noite em que dancei para você numa boate de madrugada, e você me abraçou me convidando a entrar na sua vida e em você sem palavras, só com sua respiração, suor, e também com a renda da sua calcinha verde com cachorrinhos brancos.
Sim.
Você não sabia naquela época, mas eu já olhava tudo e toda você.

Sinto você tão forte e tão perto que qualquer desarmonia entre nós me descompõe o dia inteiro. Sinto você tão forte, que me surpreendo muitas vezes com meu sentimento, porque deixo você entrar em lugares há muito tempo esquecidos, e encontro você decorando e iluminando meu espaço interno com sorrisos, e com sua incansável disposição para o bom humor.

Abro muitas vezes os olhos de madrugada, e tua pele pálida me cumprimenta no quarto meio escuro, me distraindo do sono que quer voltar a me levar ao lugar onde tu, Theo, Levi e eu combinamos de nos encontrar de novo. Às vezes, sento na cama de noite para olhar no meio das suas pernas, caso você esteja dormindo de barriga para cima, ou para suas nádegas, caso esteja de lado ou de bruços, e deixo meu desejo manso da noite despertar, mas não muito, porque curto minha lascívia escondida de ti se acumulando nos meus poros, pele, e sangue, para solta-la e poder-te abraçar uma tarde de um dia, e te fazer sentir isso que vi, aquilo que andou pelo meu corpo de noite e que te esperou para te falar com mãos, saliva, e abraços quão forte é meu desejo por ti.

Seu humor, disposição, caráter – forte e manso ao mesmo tempo – sua beleza escondida e furtiva que aparece de repente, suas palavras de amor – que saudades delas! – sua dedicação...
Lista grande que tu incorporas todos os dias.

Lembro muito bem do dia e hora em que pedi você com companhia, mas já fazia tempo que tu estavas presente. Eu só não sabia naquele momento que era tua figura a que iria me ajudar a completar o sonho acalentado no vazio do meu coração.

Somos tu e eu.
Somos mais do que isso.
Seremos cinco em breve.

E assim, com todo o esforço que precisa ser de ti, ser de vocês, olho para minha vida junto da tua, de vocês, e não consigo imaginá-la numa estrada diferente, num lugar que não seja este.

E se às vezes vou embora por dias, é para tentar encontrar minha imagem de volta, aquela que perdi olhando, cuidando, crescendo junto de ti, e dos meninos.

Verdade é esta: sinto-me completo, pleno, homem por inteiro com sua aliança, ajuda, amor, paciência, defeitos, virtudes e as partes que vem com seu nome, seus passos, sua alma.
Alma minha foi a que teve sorte de encontrar você agora neste cruzamento desta específica estrada.

Medo sinto ocasionalmente de não ter espaço suficiente para este sentir.
Porque ele é meu combustível.
Foi sentido sua falta que chegue até aqui.
Perto de ti.

E agora passo meus dias e noites, minha chuva e calor ao seu lado, muitas vezes cansado e com dor, mas contente de não ter desacreditado que existia teu nome, teus olhos, teus lábios superiores e inferiores, teu ventre, nossos filhos, e nossa vida em família.

Estou chegando aqui, dentro de ti.
Você mora em mim assim, como você leu aqui.

Me espere.
Me afague de longe e de perto.
Mas sobretudo, não desista da sua aliança comigo.
Recompensas mil nos aguardam ainda no caminho.
Permaneça em mim.
Fique por sempre, fique por perto.
Permita que meu amor exploda para vocês, para os meninos.
Me espere.
Me ame.

Deixe eu te amar sem fim.

Feliz dia de São Valentim.

Com imenso, profundo amor,

Seu marido, Yo, Israel.